Sobrevivendo A Bordo #01 - Esqueça o Glamour

Pirate Pax
E como prometido, vamos começar com o Guia De Cu É Rola de Sobrevivência a bordo. Porque todo mundo antes de embarcar, aprende (ou pelo menos finge) todas as regras de sobrevivência no mar. Mas sobreviver como tripulante de um navio de passageiros é muito mais difícil do que sobreviver no mar. Vai por mim, são três anos já nessa vida e pelo setor que eu trabalho, vejo de tudo. Então se você tá a fim de embarcar nessa aventura, senta, pega um papel e começa a anotar as regras. Você vai ver que no futuro, elas serão úteis.
Primeira regra e a mais importante de todas. ESQUEÇA O GLAMOUR!!! Não existe glamour em um navio de passageiros. Pelo menos não pra tripulação. Tira da cabeça que você vai embarcar e vai conhecer lugares diferentes, vai brincar de trabalhar, ganhar em Euro e curtir a vida. Como diria o Padre Quevedo (ainda tá vivo essa praga?), isso non ecziste.
O trabalho aqui é pesado e puxado. Primeiro de tudo, fim de semana você não sabe o que é mais. Na verdade, a maioria dos tripulantes não pensa em dias da semana e sim em portos. Domingo pra mim não é domingo, é Savona. Do mesmo jeito que segunda é Napoli e terça é Catania. Depois de duas semanas dentro de um navio, você não consegue mais conectar com o tempo aí fora. Tenha certeza disso. Feriado também não existe mais. O navio não para e muito menos você pode parar. São sete dias de trabalho na semana sem folga. E quando eu falo dia de trabalho eu tô falando de jornadas que no papel são de onze horas, mas que num dia ruim podem chegar a 17, 18. Com uma ou duas horas enfiadas no meio pra você poder comer alguma coisa. Glamour? Glamour não existe.
Falando em comida, você deve imaginar que todo dia é dia de lagosta, cozinha internacional e o escambau, né? Na verdade, não. Nem pros passageiros rola isso tudo, imagina pra tripulação. A comida aqui varia do ruim pro bizarro, mas isso é assunto pra outra regra. Está aqui só pra mostrar que glamour não existe!
Mas cada um tem uma cabine, né? Desculpa te dizer, mas não. Na maioria dos casos, você vai dividir a sua cabine com outra pessoa e o banheiro com três. E fique feliz por isso. Nos navios mais antigos, as cabines são pra quatro tripulantes e os banheiros são coletivos e nos corredores. E não pense que aquele amigo que você fez no curso antes de embarcar vai cair contigo. É sorte. E na maioria das vezes você vai acabar dividindo a cabine com um indiano que não toma banho ou com um filipino que sua purpurina. Quem já foi ou é tripulante sabe do que eu tô falando. E não tem como reclamar. É aquela pessoa contigo até o fim do seu contrato. Tem a manha? Achou o glamour? Nem eu. E antes que eu me esqueça, as cabines mal tem espaço para quatro pessoas dentro e NÃO tem janela.
Ah, mas você conhece o mundo enquanto ganha pra isso? Conheço? Quem me procurar no foursquare, pode ver todas as mayorships que eu tenho. Foi? Voltou? Bonito, né? Isso mesmo, a grande maioria delas (senão todas, não lembro agora) são apenas os portos. Claro que rola conhecer um pouco das cidades, mas na grande maioria das vezes, o que você acaba vendo são só os portos. Quando consegue. Durante um tempo no norte da Europa, tive um colega que trabalhando na galley, ficou dois meses sem conseguir colocar o pé fora do navio. O horário de trabalho dele era justamente o horário que o navio tava no porto. Cadê o Glamour?
Mas o que eu quero mesmo é melhorar o meu inglês, você vai me dizer agora. Beleza. Mas fique sabendo que a não ser que seu inglês se resuma a "The book is on the table", você vai terminar seu contrato com um inglês pior do que aquele que você chegou. Filipinos não conseguem pronunciar os "efes" das palavras. Então French Fries vira Prench Pries. Indianos tem um sotaque que muitas vezes parece que eles tão falando com você em hindi. A grande maioria dos italianos não chega nem ao nível "The book is on the table" e não conseguem pronunciar o H no início das palavras. House pra eles sai como Óuse. Ah, mas em uma companhia italiana, você deve ter melhorado o seu italiano, né? Em partes. Enquanto no Brasil a gente tem uma língua com sotaques e gírias diferentes, os italianos tem dialetos. O meu italiano é aquele genovês, o que se aprende na maioria dos lugares fora da Itália. Me manda tentar entender um Napolitano, um Siciliano ou o pior de todos um Sardo falando em dialeto. É completamente diferente. Tem horas que chega a dar medo. E cada região tem seu dialeto diferente, que eles defendem com unhas e dentes. Todos falam italiano, mas um Romano fala diferente de um Milânes que por sua vez fala completamente diferente de um Pugliese. Glamour??? Passou longe.
Acho que deu pra dar uma idéia, né? As regras continuaram, não digo quando, porque vai ser quando me der na telha enquanto eu estiver a bordo. Então já sabe, viu o navio pirata, tem mais ajuda pra vocês que querem virar marinheiro de primeira viagem. Abraços.

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